Por NELSON AGUILAR – Curador-Geral
A arte popular no Brasil sofre uma reavaliação radical quando Lina Bo Bardi assume a direção do Museu de Arte Moderna da Bahia, transformando-o em Museu de Arte Popular (1959-1964). Imbuída das melhores intenções, a arquiteta pretende conferir as hipóteses políticas e sociológicas de Antônio Gramsci, transpondo para o Nordeste as
análises do bloco agrário meridional italiano e “das possibilidades de um novo deslocamento de seus componentes potencialmente anticapitalistas, no quadro de uma estratégia conscientemente revolucionária”.
O filão que se privilegia mantém-se longe do folclore. Aposta-se no objeto reciclado como um produto que guarda a possibilidade de não- alienação, de resistência cultural. As canecas feitas com latas de lubrificantes, o famoso balde de duas alças — proveniente de um recipiente de laticínio, distribuído pela Aliança para o Progresso, programa assistencialista da América kennediana para conter as fúrias insurrecionais terceiro-mundistas —, a bacia recuperada da embalagem de uma marca de chocolate multinacional criam uma pop art prenhe de sentido inconformista.
Pela primeira vez, escapa-se ao dualismo arte erudita/arte popular, baseado numa ideologia romântica, de cunho paternalista, em que o poder, ao mesmo tempo que estira a mão, arremessa sua clientela a uma situação pré-industrial.
O que interessa à designer é o potencial que detém um fifó de cumprir seu valor de uso, esquivando-se dos bens de consumo impostos de fora para dentro. Por vezes, acontece a conversão mágica: a lamparina de parede ou de mesa provém de uma lâmpada queimada, cuja ampola funciona como depósito de querosene. O lixo volta para o uso, como Lázaro dentre os mortos.
O artista baiano revelado nos anos 90 Marepe avizinha-se dessa lucidez ao afirmar que não há objet trouvé nas redondezas, mas nécessaire, confirmando o circuito em que a fatalidade dos fins desbanca inevitavelmente a prolixidade dos meios. Para a estética pobre, todo o encontro tem de valer. A lâmpada queimada reconvertida em lamparina mostra a etapa fantástica e regressiva: da usina à manufatura, sendo difícil emudecer o grito de revolta e de insubmissão contido na passagem.
Lina Bardi deixa claro que o projeto do desenho industrial não cumpriu suas promessas libertárias. A poética de John Ruskin e William Morris, que pretende dar consciência estética à produção de bens de consumo para as massas, cai no vazio. A época do racionalismo triunfante, cujo lema está patente no aforismo de Georges Braque, “amo a regra que corrige a emoção”, encerra-se, amargando o fracasso, assim como o projeto de trazer as classes operária e camponesa ao paraíso. A emoção, aqui, corrige a regra, sobretudo enquanto a distribuição de rendas semear desigualdades.
A arquiteta participa da resistência na Itália e no Brasil. No Solar do Unhão, ela fabrica uma escada realizada com o sistema de encaixes dos carros de boi. Seu colega holandês Aldo van Eyck proferiu uma declaração de amor à forma giratória de acesso. A escada pertence a um repertório rabelaisiano, momento de indiferenciação entre as culturas da elite e das camadas desfavorecidas. A ausência de próteses que garantam o livre fluxo entre universitários e iletrados propicia a eclosão do cinema novo, sobretudo de Glauber Rocha e, mais tarde, do tropicalismo, na medida em que foram colaboradores e participantes desse processo. Ler mais…